sexta-feira, 18 de junho de 2010

Trinta e sete anos

Em frente ao espelho do banheiro ele finalmente tem certeza. Talvez a certeza mais terrível da sua vida, talvez da sua morte, mas, com certeza, era a mais terrível, independente de qual dimensão estivesse. O vapor do chuveiro havia embaçado todo o espelho. Com a mão suja de sabonete ele tentava limpar o espelho para ter certeza da sua terrível certeza.

Com o espelho desenfumaçado fixa o olhar. Tenta focar o máximo possível naquele ponto. Olha firmemente. Força as vistas até doer. E constata o que um dia seria inevitável! Ela chegou!

Consternado, começou a lembrar da jornada. Desde quando era pequeno, de cabelos loiros, correndo nas ruas do Primeiro de Maio, brincando na carvoaria da família. Depois se lembrou dos passeios de carroça do “Tio” Zé Guedes. Da linha do trem de ferro que ia do São Gabriel até perto da casa dos avós. Os passeios nos carrinhos de rolimã, na máscara de capeta do Tio Paulo. Nos cinemas com as tias Rutinha, Neide, Solimar e Sônia. Do macacão do Falcon, do pássaro preto do Vô Vicente, do palavreado da Vó Preta. Dos natais. Dos presentes da Tia Luzia. Das bananas vendidas na quitanda do avô. Foi lembrando-se da vida.

Lembrou-se dos sapatos Kildare, da calça Hamuche, dos beijos da mãe, das revistinhas de colorir que ganhou do pai de presente de aniversário. Lembrou-se dos cavalos de pau dados no Fusca meia nove. Dos amassos no Voyage oitenta e dois prata no campo do Saga. Da primeira namorada, dos amigos desta longa estrada. Do Ró, que partiu antes da hora e do Armadinho, que seguiu o mesmo caminho.

E o salsichão caído no chão, que foi comprado com muito custo com a vaquinha do pessoal da faculdade?, lembrou-se também. Até das vindas a Juatuba no Brava verde do Ângelo. Das maconhas fumadas no Opala noventa e dois com o Souza. Das cachaças e choros esvaziados com o Tião. Dos passeios na praia com Neto e Brubas. Das aventuras e desventuras vivenciadas com os “Pinguços”.

Mesmo com a certeza convicta de que ele chegara, não se arrependia de nada do que passou. Saiu do banheiro, caminhou até a sala e viu Vitor. Sorriu um sorriso alegre, leve, único. Retornou novamente ao banheiro e, mais uma vez, focou os olhos no espelho.

Realmente ele estava lá! Único como foi a sua vida. O primeiro fio de cabelo branco saindo da narina esquerda do seu monstruoso e incomparável nariz. A idade chegava. Os fios brancos rebeldes brotavam sem ao menos pedir licença. E a vida doada por Ele, vivida em grande vontade e gozo.

Feliz com toda a constatação da vida, pega uma tesoura, e sem pensar duas vezes, corta o delator dos seus trinta e sete anos.

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